CARTA ABERTA À PREFEITURA DE BELO HORIZONTE, À CÂMARA DE VEREADORES E AO MINISTÉRIO PÚBLICO

Nos últimos anos, vivemos uma grande crise, amplamente reverberada na mídia, de falta de água. A escassez hídrica que foi muito intensa de 2013 a 2017 e impactou a economia e o modo de vida de milhões de pessoas em todo o Brasil. Nos últimos dias, as águas também assumiram protagonismo na mídia, agora por sua quantidade excessiva. Saltamos da falta para o excesso, com os impactos dos diferentes focos de inundação e de alagamentos em fevereiro e março de 2018.

O tratamento equivocado dos recursos hídricos, evidente nesse balanço negativo entre excesso e falta de água, pode ser facilmente percebido no contexto urbano. Um exemplo paradigmático é a cidade de Belo Horizonte, que teve a boa oferta hídrica da bacia do ribeirão Arrudas como justificativa para que aqui fosse construída a nova capital do estado de Minas Gerais. No entanto, desde a fundação, a cidade vem lidando de maneira errática com os córregos e ribeirões, tanto na ocupação de suas áreas de inundação e retificação de seus cursos d’água quanto atuando diretamente em sua poluição.

Os rios são dinâmicos, se adaptam, com o tempo, às mudanças, mas as alterações humanas são rápidas e intensas. Com chuvas intensas, recebendo um maior volume de água, cabe ao rio transbordar, ocupar suas margens e gerar inundações – esse é o ciclo natural da água. As áreas próximas às margens dos rios são chamadas de planície de inundação exatamente por isso. Foi justamente nas planícies (áreas protegidas pelo código florestal e de grande importância para os ecossistemas fluviais) que as grandes cidades brasileiras construíram avenidas sanitárias, com o intuito de levar o esgoto para longe dos centros urbanos, canalizando córregos, reutilizando seus leitos, servindo para o transporte de carros e também para o escoamento rápido da drenagem urbana.

A inundação urbana é uma ocorrência tão antiga quanto a existência das cidades. No entanto, nas cidades brasileiras, as margens dos cursos d’água nunca foram tão densamente ocupadas, os rios nunca estiveram tão poluídos, o solo tão impermeável e a ocupação humana tão densa. As águas dos rios, córregos e galerias pluviais transbordam do leito de escoamento em épocas de grande precipitação. A impermeabilização do solo e a canalização dos rios propiciam o aumento da vazão de cheia, promovendo grandes prejuízos devido à inundação, ao aumento da carga de resíduos sólidos e à má qualidade da água contaminada por diversas fontes de poluição.

Infelizmente a tendência ainda vigente dos projetos de macrodrenagem no Brasil é de canalização dos trechos críticos – atacando apenas o sintoma e desconsiderando as causas e as consequências no restante da bacia. Alargar pontos críticos só desloca a inundação no interior da mesma bacia. Nestes termos, são necessários mais investimentos para ampliar as canalizações; ou, quando não há mais espaço para ampliar os canais, as soluções convergem para o aprofundamento do canal, a altos custos. O problema vai sendo postergado e demanda, a cada vez, volumes mais vultosos de investimentos.

No entanto, é preciso dizer com todas as letras: as canalizações e retificações dos cursos d’água aumentam o risco e a frequência das inundações! Como a água corre mais rapidamente no canal retificado e pavimentado, ela chega com maior velocidade aos fundos de vale – tornando as inundações mais críticas. Ciente disso, a prefeitura de Belo Horizonte, na década de 2000, iniciou uma importante iniciativa de coexistência dos cursos d’água com a cidade, o programa DRENURBS. Um programa que propunha a não canalização dos cursos d’água e o tratamento do leito natural, por ações em conjunto com a população.

O DRENURBS foi um programa de reconhecimento nacional e internacional, mas infelizmente foi enfraquecido e distorcido. Há alguns anos, a prefeitura de Belo Horizonte retomou o modelo equivocado de canalizações, impermeabilizações e construção de grandes bacias de detenção que não resolvem o problema: apenas amenizam o efeito, sem enfrentar de fato o problema. Trata-se de enxugar gelo.

De maneira similar à água, funciona a mobilidade urbana. É consenso entre estudiosos do tema que ampliar a oferta de espaço para automóveis, através de alargamento de ruas e avenidas, construção de viadutos, trincheiras e elevados, que custam milhões de reais, apenas empurra engarrafamentos para mais adiante. Estudos empíricos realizados por décadas em cidades americanas e europeias demonstram que o aumento da oferta para automóveis tende a ser saturado em poucos anos.

Em pleno ano de 2018, em que esses conceitos já são consolidados nos seus segmentos de estudo, surge a proposta da atual gestão da Prefeitura de Belo Horizonte, de contrair empréstimos de cerca de R$800 milhões para a realização de obras na cidade. Não houve discussões públicas e coletivas sobre o conteúdo das obras, mas notícias na imprensa indicam foco em “contenção de enchentes” e construção de viadutos. Sem acesso aos projetos, embora a cidade possua espaços para essa discussão (Conselho de Política Urbana, de Mobilidade Urbana e de Meio Ambiente, por exemplo), a sociedade fica refém da decisão de alguns gestores públicos.

É hora de dar um basta em projetos falaciosos, em obras sem fundamento, em gastos milionários sem metas objetivas, que drenam os recursos públicos. Não podemos aceitar que a Prefeitura de Belo Horizonte contraia mais um empréstimo para realizar obras sem o debate necessário, o planejamento conjunto com a sociedade e o alinhamento com as boas práticas ambientais contemporâneas, conforme previsto na Política Nacional de Mobilidade Urbana e no próprio Plano de Mobilidade da cidade. Afinal, se obras de engenharia rodoviaristas ou sanitaristas resolvessem problemas de mobilidade e os ligados às chuvas, as tragédias por aqui estariam diminuindo e o trânsito melhorando – e não se agravando ano a ano, como todos podemos perceber.

Os rios precisam ser encarados como elementos hídricos valiosos, em um sentido amplo e não apenas como valor monetário, pois pulsam em sua biodiversidade, demarcam territórios, indicam qualidade de vida, formam culturas, valores, hábitos e costumes, e podem possibilitar saúde e cidadania. A mobilidade urbana precisa receber uma urgente inversão de prioridade, que invista de fato nos modos mais efetivos de deslocamento (transporte coletivo, bicicletas, a pé), que causam menos trânsito, menos emissão de gases de efeito estufa, de poluentes atmosféricos, menos acidentes, sendo mais acessíveis, inclusivos e justos.

Diversas cidades do mundo têm atuado nessa perspectiva, que concilia mobilidade urbana efetiva com a preservação e a valorização dos cursos d’água e do meio ambiente urbano. Elas têm trabalhado pela ampliação da permeabilidade do solo, pela absorção das águas próximas ao local das chuvas, pela manutenção de áreas verdes, de nascentes, pela boa qualidade ambiental dos cursos d’água e promoção, em especial, da mobilidade ativa. Essa abordagem se aproxima do conceito da Trama Verde e Azul proposta pelo Plano Diretor de Desenvolvimento Sustentável da Região Metropolitana de Belo Horizonte. O arcabouço de ações englobadas nessa perspectiva, tecnicamente fundamentadas, vem sendo executadas mundo afora.

Em Londres, a pioneira revitalização do rio Tâmisa tem os peixes e o ecossistema aquático como indicadores de resultado de ações de revitalização. Na França, a recuperação dos rios Sena e Reno se dá a partir da incorporação dos Comitês de Bacia como instrumentos de articulação entre governos, usuários e sociedade civil. Nos Estados Unidos, a revitalização do rio Anacostia enfatiza a necessidade de eliminação da poluição difusa, exigindo intervenções também em toda a bacia, como por exemplo: educação ambiental, novas leis para o licenciamento de construções, novas abordagens para o tratamento e disposição final do lixo produzido na cidade, e a ênfase na abordagem ecossistêmica. Experiências norte-americanas mostram, também, remoção de antigas barragens em processos de revitalização de rios.

Em tantas cidades do mundo, obras rodoviaristas vem sendo demolidas para devolver às cidades espaços públicos de qualidade. Em São Francisco e em Portland, como em tantas outras cidades americanas, elevados dão lugar a praças, moradias, esplanadas, parques ciliares. Em Paris, Avenidas construídas à beira do Sena estão sendo substituídas por um parque urbano. Em Seul, na Coreia do Sul, um elevado, pelo qual passavam 1,5 milhão de veículos por dia, foi demolido para dar lugar a um parque linear de 9,4 km ao longo do rio. Nesses e em outros casos, os resultados foram a melhoria do trânsito e da qualidade do ar, redução de temperatura e novos espaços de lazer para a população.

Estas experiências são reais, factíveis e estão a nosso alcance – como demonstram muito bem os projetos bem-sucedidos do programa DRENURBS.

As entidades e pessoas abaixo assinadas solicitam à Prefeitura de Belo Horizonte, à Câmara de Vereadores e ao Ministério Público que as obras a serem realizadas na cidade sejam fruto de um debate efetivo com a sociedade, com soluções de longo prazo, ambientalmente corretas e adequadas ao bom uso da cidade. Que as alternativas técnicas sejam explicitadas; que a população possa decidir sobre o destino dos recursos públicos; que possamos solucionar problemas e construir políticas para a cidade que a tornem ambientalmente justa, eficiente em seus deslocamentos, saudável como ecossistema e com a presença de águas em um sistema de harmonia com a vida urbana.

(Caso o nome de alguma entidade ou pessoa não esteja na listagem , pedimos desculpas e por favor entre em contato.)

Subcomitê da Bacia Hidrográfica do Ribeirão Arrudas
Subcomitê da Bacia Hidrográfica do Ribeirão Onça
Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio das Velhas
BH em Ciclo – Associação dos Ciclistas Urbanos de Belo Horizonte
Boi Rosado Ambiental
Coletivo Jacintas
Comupra – Conselho Comunitário Unidos pelo Ribeiro de Abreu
Desvelocidades
ECOAVIS – Ecologia e Observação de Aves
Fórum Nacional da Sociedade Civil nos Comitês de Bacias Hidrográficas (Fonasc.CBH)
Grupo Cosmópolis – UFMG
Grupo Geografia e Recursos Hídricos – IGC/UFMG
Instituto Guaicuy
Instituto Pé de Urucum
Jornal Caiçaras
Movimento Nossa BH
Núcleo Cascatinha
Núcleo Cascatinha
Núcleo Nossa Senhora da Piedade.
Núcleo Tamboril
Projeto Cercadinho UniBH
Projeto Manuelzão
Rede Ação Ambiental
Rede Ação Ambiental – Agentes Ambientais Em Ação
Rede de Apoio ao Desenvolvimento do bairro Jardim Felicidade
Rede de Apoio ao Desenvolvimento do bairro Jardim Felicidade
Terça à Esquerda

 

Adriana Assunção de Carvalho
Adriano Gomes Peixoto
Ana Mansoldo
Apolo Heringer Lisboa
Brenner Henrique Maia Rodrigues
Camila Hilbert Cardoso
Carla Wstane
Cecília Siman Gomes
Clarissa Bastos Dantas
Claudio Moreira
Cláudio Moreira da Silva
Cristiano Pena Magalhães Marques
Dalva Lara
Daniel Augusto de Miranda
Daniel Augusto de Miranda
Elísio Ernesto Gomes Dantas
Erick Sangiorgi
Fernando Pereira Bretas
Fernando Pereira Bretas
Francisco Bizzotto Gomes
Gisele Fernandes de Sales Barbosa
Guilherme Peron
Gustavo Gazinelli
Izabella Rezende
Jeanine Oliveira
Joana D’arc Souza
Joselaine Filgueiras
Laiza Tadim Pascoal
Leilane Cristina Gonçalves Sobrinho
Lucas Bastos Bomfim
Lucas Grossi Bastos
Lucas Vieira Magalhães
Luciana Cruz
Luciana Gomes
Luciana Maciel Bizzotto. Bizzotto.lu@gmail.com.
Maisa Castro de Lana
Márcia Rodrigues Marques –
Marcos Paulo Vieira Torres
Marcus Vinicius Polignano
Maria José Zeferino
Mariana Nahas
Mariana Pimenta Lopes de Oliveira
Mirelle Queiroz Gonçalves
Nísio Miguel Tôrres de Miranda
Pollyana Oliveira do Carmo
Pollyana Oliveira do Carmo
Raquel Quintão
Roberta Ferreira Rodrigues
Roberto Caldeira Barros
Roberto Caldeira Barros
Rodrigo Silva Lemos
Suellen Cristina Barbosa Archanjo
Roberto Andrés